Mesmo os mais céticos com relação aos rumos da política brasileira — marcada por incontáveis casos de corrupção, vícios históricos, casuísmos e outras injustiças — curvaram-se à mobilização popular de que resultou a aprovação da Lei Complementar 135, a Lei da Ficha Limpa.
Ela é uma realidade, apesar dos intensos debates que sua efetiva aplicação está provocando no meio jurídico. O que também é absolutamente natural, se levarmos em conta que a lei foi aprovada em tempo recorde, às vésperas do prazo legal para o registro de candidaturas, impondo uma nova postura àqueles que almejam um mandato eletivo. Se nem todos estão bem na foto, como de fato não estão, é porque algo estava errado. 
O registro desses erros é extenso, projetam práticas incrustadas ao longo dos anos, estimulando políticos a condutas intempestivas em períodos pré-eleitorais, muitas vezes, e escancaradamente, usando a máquina do Estado em favor de seus candidatos. Práticas que transformam as milionárias verbas publicitárias em instrumento promocional e que, na ausência de qualquer outro mecanismo de transparência (como seria o financiamento público das campanhas), alimentam o famigerado “caixa dois”, os abusos do poder econômico e do poder político.
Isto não quer dizer, contudo, que se deva negar aos atingidos pela lei o sagrado direito de defesa. Como qualquer ciência, o Direito não comporta dogmas. O questionamento é tão vital à sua evolução como o oxigênio é para nós, seres humanos. O princípio da presunção de inocência, por exemplo, precisa ser respeitado, da mesma forma como não se pode confundir condições de elegibilidade com cassação de direitos políticos. 
Em outras palavras, quando o legislador estabelece como condição para o exercício do mandato eletivo a ausência de condenação judicial, isto não pode ser encarado como uma negação ao princípio da presunção da inocência do candidato, mas sim uma exigência para que aquele mandato que lhe foi outorgado pelos eleitores seja exercido por cidadãos, ou cidadãs, que nada devam à Justiça. Políticos de caras limpas, se assim preferirem.
Mas o debate jurídico enseja inúmeras outras questões que provavelmente irão extrapolar a esfera do Tribunal Superior Eleitoral, e o Supremo Tribunal Federal terá de dar a palavra final. É o curso natural de uma transformação iniciada por cidadãos que generosamente inscreveram suas assinaturas, uma a uma, em folhas de papel espalhadas país afora. Um gesto aparentemente simples, mas com um potencial de enormes proporções, como se vê.
O que nos leva ao próximo passo: a reforma política, cuja discussão deve envolver todos os segmentos da sociedade civil organizada para pressionar o Parlamento a colocá-la em pauta. Não se procura tirar legitimidade do Congresso, ao contrário, trata-se de oferecer elementos para que este cumpra a sua verdadeira missão de legislar em sintonia com os interesses da sociedade. Desta forma, estamos fortalecendo-o.
Pode-se dizer o que quiser dos políticos e da política, mas devemos reconhecer que nela repousam as esperanças de uma nação cujo caminho a trilhar é o da democracia. Democracia com ética, pois sem ética ela se esvazia num jogo de retórica que não traduz o seu significado. Já era tempo de retirar esse vergonhoso manto sob o qual se abrigavam políticos com graves antecedentes criminais, arrastando as instituições para o fosso do descrédito.
Este é o espírito da Ficha Limpa, e foi ele quem inspirou uma mobilização que se inscreve como das mais brilhantes páginas dos anais de nossa história republicana contemporânea. Uma mudança de baixo para cima, que nos remete à essência democrática segundo a qual “todo o poder emana do povo”.
Em um país habituado a duvidar de seu próprio arcabouço legal, ante a pitoresca realidade das leis que pegam e as que não pegam, era natural esse misto de incredulidade e expectativa no ar. Porém, decorrido pouco mais de um mês desde que entrou em vigor, não há mais o que discutir sobre a Ficha Limpa: pegou e veio para ficar.