I - A SOCIEDADE E A PROTEÇÃO JURÍDICA

1.         A Sociedade e o Direito  

            O estudo da história das civilizações tem demonstrado que a sociedade, em seus vários graus de desenvolvimento, inclusive os mais primitivos, sempre esteve erigida segundo regras de convivência. O ser humano possui uma vocação, que lhe é imamente, de viver em grupo, associado a outros seres da mesma espécie. Como observou Aristóteles: “o h. é um animal político, que nasce com a tendência de viver em sociedade”. É, portanto,  predominante o entendimento de que não há sociedade sem direito: ubi societas ibi jus (onde está a sociedade, está o direito). Ao lado dos que assim pensam, formam ainda os autores que sustentam ter homem vivido uma fase evolutiva pré-jurídica. Mas, sem divergência, os historiadores reconhecem que a sociedade e o direito nasceram e caminham lado a lado. Da mesma forma que não há sociedade sem direito, a recíproca também é verdadeira,  não há direito sem sociedade: ubi jus ibi societas; e nesse particular, sustenta-se que não haveria, assim,  lugar para o direito, na ilha do solitário Robinson Crusoé, até a chegada do índio Sexta-Feira.

           
            A razão dessa correlação entre a sociedade e o direito está na função ordenadora que este exerce naquela, representando o canal de compatibilização entre os interesses que se manifestam na vida social, de modo a traçar as diretrizes, visando prevenir e compor os conflitos que brotam entre seus membros.

            A tarefa da ordem jurídica é, pois, a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a realização do máximo de satisfação na usufruição dos bens da vida com o mínimo de sacrifício e desgaste aos usufrutuários desses bens-interesses. E o critério que deve nortear essa coordenação ou harmonização na busca incessante do bem-comum é o do "justo e o eqüitativo", vigente em determinado tempo e lugar.

1.1.      Conflitos de interesse. Pretensão, resistência e lide  ­- desde os primórdios fala-se dos conflitos intersubjetivos, como aqueles capazes de pôr em risco a paz social e os valores humanos juridicamente relevantes, designando, assim, os desejos, as exigências e as pretensões que o ser humano procura satisfazer, individualmente ou em grupo, por necessidade ou por espírito de emulação. Quando esses interesses se contrapõem, conduzindo à disputa, à violência e à desordem,  ingressam no campo da patologia social. Esses conflitos emergem do seio social quando uma pessoa, pretendendo para si determinado bem, não pode obtê-lo – ou porque (a) aquele que poderia satisfazer a pretensão reclamada não a faz, ou porque (b) o próprio direito proíbe a satisfação voluntária da pretensão (p.ex. a pretensão punitiva estatal que não pode ser satisfeita mediante um ato de submissão do indigitado criminoso).

            O impasse gera insegurança e é sempre motivo de angústia e tensão individual e social. Essa indefinição não interessa a ninguém, surgindo, daí, em regra, os denominados conflitos de interesses, caracterizado pela disputa dos bens limitados, ou o exercício de direitos sobre esses bens que exige determinadas formalidades a serem fiscalizadas pelo Estado. Desse conflito, que para alguns pareceria mais adequado denominar-se "convergência de interesses", não chegando seus titulares a uma solução espontânea e satisfatória, surge o que a doutrina tradicional chama de  lide que nada mais é que  a tentativa resistida da realização de um interesse. Ou na clássica definição de Carnelluti, "o conflito de interesses, qualificado por uma pretensão resistida (discutida) ou insatisfeita".

1.2       Espécies de Interesses. – É preciso não se esquecer, por outro lado, que o direito, ao regulamentar a fruição de bens, em sentido amplo, e o comportamento das pessoas em relação a esses mesmos bens, leva em consideração não só os interesses individuais, de A ou B, mas também os interesses coletivos e, ainda, os interesses que transcendem as necessidades individuais ou grupais e são focalizados como imposições da sociedade, como pretensão de valores supraindividuais, sobre os quais as pessoas, individualmente, não têm disponibilidade, consubstanciados no termo "interesse público", ou como modernamente são chamados: "interesses ou direitos difusos".

            Esses conflitos, ou como já se disse, chamados por alguns, interesses convergentes sobre bens, portanto, pode ser:

                        a)   individual, quando afeta uma ou algumas pessoas;
                        b) coletivos, quando afeta um grupo de pessoas, representando a soma dos interesses individuais;
                        c)  difusos, quando transcende, inclusive, a soma dos interesses individuais e afeta a sociedade como um todo, em seus objetivos básicos.

            Interesses individuais são aqueles em que a situação favorável à satisfação de uma necessidade pode determinar-se em relação a um indivíduo, isoladamente. Ex. o uso de uma casa é um interesse individual, porque cada um pode ter uma casa para si.

            Interesses coletivos são aqueles em que a situação favorável à satisfação de uma necessidade não se pode determinar senão em relação a vários indivíduos, em conjunto. Ex. o uso de uma grande via de comunicação é um interesse coletivo, porque esta não pode ser construída para a satisfação isolada de um só homem, mas a de muitos homens. "No interesse individual, a razão está entre o bem e o homem, conforme suas necessidades; no interesse coletivo, a razão ainda está entre o bem e o homem, mas apreciadas as suas necessidades em relação a necessidades idênticas do grupo social" (Amaral Santos). A existência dos interesses coletivos explica a formação dos grupos sociais, e, porque a satisfação das suas necessidades não pode ser conseguida isoladamente, os homens se unem em grupos. (ex. os da família, da sociedade civil e comercial, da corporação, do sindicato e do Estado

            Interesses difusos são aqueles em que a situação favorável à satisfação de uma necessidade não se pode determinar senão em relação aos titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas ligados por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas entre todos os seus titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade.

            O direito disciplina todos esses interesses que, eventualmente, se contrapõem, às vezes se superpõem, se contradizem, se interferem, se influenciam. Assim, perante determinado fato, podem convergir um ou diversos interesses individuais, um interesse coletivo e, também, o interesse público.
           
            Compete ao direito, portanto, a disciplina da relação dos indivíduos com os bens da vida, apontando, em cada de conflito, qual interesse deve prevalecer, e qual deve ser sacrificado. O critério de escolha decorre do valor que pretende o direito ver preponderar.

2.         Meios de Resolução dos Litígios. Autodefesa, Autocomposição e o Processo

            Surgindo um conflito entre dois interesses contrapostos, é possível que ele se resolva por obra dos próprios litigantes ou mediante a decisão imperativa de um terceiro. Na primeira hipótese, ocorre uma solução parcial do conflito, porque resolvido pelas próprias partes e, na Segunda, uma solução imparcial do conflito, isto é, por ato de terceiro desvinculado do litígio.

            A resolução dos conflitos pois,  ocorrentes na vida em sociedade, pode-se  verificar por (1) obra de um ou de ambos os sujeitos envolvidos no conflito de interesses, ou ainda (2) por ato de terceiro, estranho à contenda. Na primeira hipótese, um dos interessados (ou cada um deles) consente no sacrifício total ou parcial do próprio interesse (autocomposição) ou impõe o sacrifício do interesses alheio (autodefesa  ou autotutela). Na segunda, pontifica-se a interferência de terceiro estranho ao conflito, a mediação e o processo.

            Como formas parciais de resolução dos conflitos temos então a Autotutela ou Autodefesa e a Autocomposição e, como forma imparcial, o processo.
           
2.1     Da autotutela à jurisdição ­-  modernamente, em ocorrendo a convergência de interesses antagônicos, ou um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (caracterizando-se então a lide), em princípio o direito impõe que, se se quiser pôr fim a essa disputa, seja provocado o Estado-juiz, que tem como vocação constitucional a prerrogativa de dizer, no caso concreto,  qual a vontade do ordenamento jurídico (declaração) e, se for o caso, fazer com que as coisas se disponham, na realidade prática, conforme essa vontade (execução).

            Contudo, nem sempre foi assim. Nos primórdios da civilização, inexistia um Estado suficientemente aparelhado para superar os desígnios individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade egoística dos particulares. À míngua de um órgão estatal, com soberania e autoridade emanada da sociedade representada, que garantisse o cumprimento do direito que, aliás, nem estava corporificado em leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado a si e aos particulares), quem pretendesse alguma coisa a que outrem se opusesse, haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pretensão (autotutela ou autodefesa). Até mesmo a repressão aos atos criminosos se fazia em regime de vingança privada e, quando o Estado atraiu para si o jus puniendi, ele o exerceu inicialmente mediante seus próprios critérios e decisões, sem a participação de órgãos ou pessoas imparciais independentes e desinteressadas. Hoje, podemos sentir o quão precário e aleatório  era o regime da AUTOTUTELA ou AUTODEFESA, pois não garantia a justiça, mas a vitória do mais forte, mais astuto ou mais ousado sobre o mais fraco ou mais humilde.

            São, pois, fundamentalmente, dois os traços característicos da Autotutela:
                        a) ausência de julgador distinto das partes; 
                        b) imposição da decisão por uma  das partes à outra.

            Além da autotutela ou autodefesa, outra solução possível, nos sistemas primitivos, era a autocomposição: uma das partes em conflito, ou ambas, abriam mão do interesse ou parte dele. Essa espécie, representava (e ainda hoje representa) meio dos mais democráticos de resolução de conflitos, pois prestigia a vontade, a espontaneidade de decisão dos próprios titulares do direito disputado, independente da força ou da solução da pendência por terceiro desinteressado. São três as formas de autocomposição: a) desistência (renúncia à pretensão); b) submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão); c) transação (concessões recíprocas). Todas essas soluções têm em comum a característica de serem parciais­, no sentido de que dependem da vontade e da atividade de uma ou de ambas as partes envolvidas.

            Aos poucos, foi-se percebendo que esses sistemas não atendiam plenamente as exigências do justo e do eqüitativo, enfim, daquele sentido maior de justiça, de que cada um ficasse com o que realmente era  seu. Os indivíduos, dessas sociedades ainda primitivas, ávidos por soluções mais eqüânimes para seus conflitos que se apresentavam cada vez mais complexos, começaram a preferir, ao invés de uma solução parcial de suas demandas, uma decisão amigável e imparcial através de árbitros, escolhidos entre pessoas de confiança mútua em que as partes se louvavam para  a solução das pendências. Essa tarefa, em geral, era conferida aos sacerdotes, cujas ligações com as divindades garantiam soluções acertadas  e incontestáveis, de comum acordo com a vontade dos deuses; ou aos anciões, que conheciam os costumes do grupo social integrado pelos interessados. A decisão dos árbitros pautava-se nos padrões escolhidos pela consciência coletiva, inclusive pelos costumes. Surge, daí, historicamente, o juiz antes do legislador.

            À medida que o Estado foi-se firmando, como longa manus da sociedade, passou a se impor aos particulares mediante a invasão de sua antes indiscriminada esfera de liberdade; nascia, também, para ele, gradativamente, a tendência de absorver o poder de ditar as soluções para os dissídios individuais. A História mostra que das origens do direito romano até o século II antes aC, sendo dessa época a Lei das XII Tábuas, o Estado já participava dessas atividades destinadas a indicar qual o comando do direito para o caso concreto de conflito de interesses. Os cidadãos em litígio compareciam perante o pretor, comprometendo-se a aceitar o que viesse a ser decidido; o processo civil romano desenvolvia-se, assim, em dois estágios: perante o magistrado, ou pretor (in jure ¾- nesse primeiro estágio, aquele compromisso das partes em aceitar a indicação do decisor, chamava-se litiscontestatio), e perante o árbitro  ( apud judicem ¾- para o julgamento). Vê-se que, nesse período, o Estado, timidamente, já tinha alguma participação na solução dos litígios. Com o passar dos tempos, para facilitar a sujeição das partes às decisões de um terceiro, a autoridade pública começa a preestabelecer, em forma abstrata, através de regras destinadas a servir de parâmetro objetivo e vinculativo para tais decisões, buscando, assim, impedir os julgamentos arbitrários e subjetivos. Surge, então, o legislador (a Lei das XII Tábuas, no ano 450 aC, é um marco histórico fundamental dessa época).

            Depois desse período arcaico, veio um outro, em que o pretor, contrariando a ordem estabelecida, passou a conhecer ele próprio do mérito dos litígios entre os particulares, proferindo sentença, inclusive, ao invés de nomear ou de aceitar a indicação de um árbitro que o fizesse. Essa nova fase, iniciada no século III dC, é, por isso mesmo, conhecida por período da cognitio extra ordinem. Através dela, completou-se o ciclo histórico da evolução da chamada justiça privada para a justiça pública: o Estado, suficientemente fortalecido, sobrepunha-se à vontade  dos particulares, e, prescindindo-se da voluntária submissão destes, impingia-lhes autoritariamente a sua solução para os conflitos de interesses. Surge, assim, a jurisdição, nome que se dá à atividade, através da qual, os juízes estatais resolvem os conflitos de interesses, agindo em substituição às partes envolvidas, que não podem mais fazer justiça com as próprias mãos (vedada a autodefesa, como regra); às partes, que não podem agir, resta a possibilidade de fazer agir, provocando o exercício da função jurisdicional.

            Assim, segundo os historiadores, antes de o Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso concreto e promover a sua realização prática (jurisdição), houve três fases distintas: a) autotutela ou autodefesa ( O Estado, ainda em fase embrionária, não tinha poder de solucionar os conflitos) - os particulares resolviam suas próprias querelas, através da força. Fácil perceber quão precária e aleatória era essa forma de solução de conflitos, pois não garantia justiça, mas a vitória do mais forte, do mais astuto ou mais ousado sobre o mais fraco, o mais humilde ou o mais tímido ¾ período primitivo: lex actionis; b) arbitragem facultativa  (numa fase mais avançada da civilização, sempre em busca de meios alternativos à autotutela) ¾  as partes compareciam perante um pretor (órgão do Estado) comprometendo-se a aceitar o que viesse a ser decidido; e esse compromisso, necessário porque a mentalidade da época repudiava ainda qualquer ingerência do Estado, ou de quem quer que fosse, nos negócios de alguém contra a vontade do interessado, recebia o nome de litiscontestatio. Em seguida, escolhiam um árbitro de sua confiança, o qual recebia do pretor o encargo de decidir a lide. Aqui o Estado já tinha alguma participação na solução do conflito ¾  (esse sistema perdurou durante todo o período clássico do direito romano ¾ período formulário : O magistrado estava autorizado a conceder fórmulas de ações que fossem aptas a compor qualquer lide que se apresentasse: havia a intervenção de advogados (séc. II aC a séc. III dC); c) arbitragem obrigatória (substitui a anterior arbitragem facultativa - nessa fase a nomeação inicialmente do árbitro cabia às partes, competindo ao magistrado apenas a outorga ao árbitro de poderes para a solução do conflito) - vedada que era, agora, a autotutela, o sistema então implantado consistia numa arbitragem obrigatória. Surge, então, o legislador, tendo como marco histórico fundamental dessa época a Lei da XII tábuas, no ano 450 aC.

            Depois dessa fase que englobava os períodos arcaicos e clássicos, conhecida por ordo judiciorum privatorum, veio outra que se caracterizou pelo crescimento dos poderes pretor que passava a ocupar espaço que não lhe pertencia: rompendo com a ordem preestabelecida, o funcionário do Estado passou a conhecer ele próprio do mérito dos litígios entre particulares, proferindo ele mesmo sentença, ao invés de nomear ou aceitar a nomeação de árbitro que o fizesse.

            Essa nova fase, conhecida por período da cognitio extra ordinem, teve início no séc. III dC, completando o ciclo histórico da evolução da chamada justiça privada para a justiça pública: o Estado, já suficientemente organizado e fortalecido, impõe-se aos particulares, prescindindo da voluntária submissão destes, impondo-lhes autoritativamente sua decisão. À atividade, através da qual, os funcionários estatais (juízes) resolvem as lides dá-se o nome de jurisdição. E, como essa atividade se exerce através do processo, pode-se conceituar este como método ou instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para fazer cumprir preceito jurídico (vontade da lei) válidas para os casos concretos litigiosos que lhes são apresentados para solução.

            O processo surgiu com a arbitragem obrigatória. A jurisdição só depois, no sentido como a entendemos atualmente.